Trump usa música que branqueia invasão do Capitólio em campanha eleitoral
O ex-presidente norte-americano Donald Trump tem tentado reescrever a história do ataque de 2021 ao Capitólio através de uma música cantada por um grupo de condenados pela insurreição, usando-a como hino na sua campanha eleitoral.
A música – “Justice for All” (“Justiça para Todos”) -, que é já um hino entre apoiantes de Trump, foi cantada por um grupo de homens condenados pela participação no ataque ao Capitólio em 06 de janeiro de 2021.
Gravada através de uma linha telefónica da prisão, a música soa mais como um canto fúnebre do que uma celebração e contém ainda a voz de Trump a recitar o juramento à bandeira.
A música é simples e curta, mas isso não a impediu de ser adotada pelo ex-presidente Donald Trump e seus aliados na sua campanha presidencial.
Num comício recente em Waco, no Texas, Trump reproduziu “Justice for All”, enquanto imagens dos desordeiros no Capitólio eram transmitidas numa grande tela atrás do ex-presidente Republicano.
A música, que custa 1,29 dólares (1,17 euros), atingiu no mês passado ao primeiro lugar no iTunes – reprodutor de áudio desenvolvido pela Apple -, ultrapassando artistas como Miley Cyrus e Taylor Swift.
Especialistas em extremismo e propaganda dizem que a música é outro exemplo de como Trump e os seus aliados mais radicais estão a tentar encobrir uma avalanche de provas de que a invasão do Capitólio foi tudo menos um ato de resistência patriótica.
Neste caso, Trump e os seus aliados estão ironicamente a apoiar-se nesta canção alegadamente patriótica para tentar encobrir uma insurreição que contribuiu para cinco mortes e deixou mais de 120 polícias feridos, disseram especialistas.
“Não devemos surpreender-nos com o facto de essa propaganda ser eficaz, mas é chocante assistir a isso neste país”, disse Federico Finchelstein, presidente do departamento de história da New School for Social Research em Nova Iorque, que é especialista em desinformação autoritária.
“O que eles estão a exigir é que a realidade seja deixada de lado pela lealdade ao líder. E esse líder, neste caso, é Donald Trump”, acrescentou.
Os polícias que se opuseram aos invasores qualificam a música de um esforço cínico para enganar os norte-americanos sobre a verdade do que aconteceu durante o ataque de janeiro de 2021, depois da derrota eleitoral de Trump e quando o Congresso certificava a vitória do Democrata Joe Biden.
As sondagens mostram que os norte-americanos continuam divididos por ideologia, quando se trata do ataque de 06 de janeiro.
Um levantamento feito no ano passado pelo Centro de Pesquisa de Assuntos Públicos da Associated Press-NORC descobriu que cerca de metade dos inquiridos acredita que o envolvimento de Trump justificou acusações criminais.
Uma segunda sondagem revelou que apenas quatro em cada 10 Republicanos se lembram do ataque como muito violento ou extremamente violento.
Essas dúvidas foram alimentadas por apresentadores de televisão e autores de ‘podcasts’ de extrema-direita que passaram dois anos a defender teorias bizarras para mitigar o horror daquele dia mortal.
Os réus de 06 de janeiro, que apresentaram desculpas e remorsos no tribunal, agora gabam-se da sua participação ou procuram lucrar com ela.
Surgiram grupos para vender camisolas com frases como “Libertem os manifestantes de 06 de janeiro” e outras mercadorias que procuram retratar os invasores como simples manifestantes. Muitos dizem que estão a tentar arrecadar dinheiro para os condenados e suas respetivas famílias.
Os produtores desta música não dizem quanto a música arrecadou, como é que os lucros serão divididos entre os condenados, nem sequer identificam a maioria dos cerca de 20 participantes na gravação.
No entanto, não se inibem de divulgar o sucesso da música.
“Adeus Miley, Taylor, Rihanna e todos os outros que gastaram milhões a tentar chegar ao cobiçado número 1”, escreveu em 21 de março um dos produtores da música, Kash Patel, na Truth Social, a rede social criada por Trump.
Reivindicar o primeiro lugar pode permitir aos produtores promoverem-se, mas conquistar o topo do iTunes já não é a conquista que era antes, uma vez que o número de pessoas que fazem ‘download’ de músicas diminuiu consideravelmente devido à popularidade de serviços de ‘streaming’ como o Spotify.
Lançada no início de março, a música está associada ao “The Justice for All Project”, uma organização sem fins lucrativos registada no mesmo mês com endereço em Sarasota, na Florida.
Ed Henry, uma ex-personalidade do canal conservador Fox News, está identificado como diretor da organização e, juntamente com Patel, como produtor de “Justice for All”.
Outro diretor da organização sem fins lucrativos é Tom Homan, ex-chefe de Imigração e Alfândega de Trump.
Ele também é o CEO do The America Project, um grupo da Florida que gastou milhões de dólares em esforços para minar a confiança nas eleições norte-americanas, tendo, inclusive, patrocinado conferências para negacionistas das eleições.
O America Project foi fundado em 2021 por Michael Flynn, um ex-general do Exército que serviu brevemente como conselheiro de segurança nacional de Trump, e Patrick Byrne, fundador da plataforma de vendas ‘online’ Overstock.
Os 20 prisioneiros que cantam “Justice for All” representam uma pequena fração das cerca de 1.000 pessoas que foram acusadas de crimes federais relacionados com o motim.
Mais de 600 declararam-se culpadas ou foram condenadas, e dezenas já receberam penas de prisão que variam de sete dias a 10 anos.
Apenas um membro do grupo foi identificado: Timothy Hale-Cusanelli, que cumpre agora quatro anos de prisão pelas suas ações em 06 de janeiro.
Antes de se juntar à multidão que invadiu o Capitólio dos Estados Unidos, Hale-Cusanelli era um reservista do Exército que por vezes usava o seu bigode ao estilo de Adolf Hitler e que alarmava os colegas de trabalho com os seus comentários sobre mulheres e judeus.
“O meu comportamento naquele dia foi inaceitável, ultrajei o meu uniforme e desgracei o país”, disse Hale-Cusanelli ao juiz antes de ser condenado a quatro anos de prisão federal.
Agora, o condenado tornou-se numa espécie de artista, com uma música em que procura retratar-se como um patriota e não como um desordeiro.
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