O sonho de Hollywood já não exige viver em Los Angeles
O guionista português Mário Carvalhal, que está a escrever uma série para a Apple TV+, considera que o sonho de Hollywood evoluiu e já não exige viver em Los Angeles, ao contrário do que acontecia no passado.
“Há dez anos, e até há cinco, era mesmo necessário viver em Los Angeles, era impossível pensar numa carreira sem isso”, disse à agência Lusa o guionista. “Hoje em dia, isso não é verdade”.
Além da série para a Apple TV+, que deverá sair no final de 2023, Mário Carvalhal escreveu o guião do filme “Browse”, lançado em 2020 com realização de Mike Testin.
“A ideia de vir para LA não é necessariamente errada e nalgumas circunstâncias pode fazer sentido”, ressalvou. Mas hoje as possibilidades são muito diferentes do que eram há mais de uma década, quando Carvalhal chegou a Los Angeles vindo de Londres, depois de concluir o curso de Cinema.
Radicado nos Estados Unidos desde 2010, o guionista assistiu a uma grande transformação da indústria, com o ‘streaming’ a gerar uma “era de platina” da televisão e cinema em casa, e a abrir oportunidades para criativos em todo o mundo.
“Eu aconselhava a quem quer uma carreira, a fazer os melhores filmes que puder com quem está à sua volta, no sítio onde está, e tentar usar o elemento que é único onde estiver”, indicou o português.
“É a melhor forma de fazer um filme pessoal e que reflita a sua cultura. Isso acaba por ter muito mais valor do que estar a tentar fazer o que dez mil outras pessoas estão a tentar fazer”.
Na sua visão, os filmes mais interessantes a ser feitos são esses, não necessariamente os filmados em Los Angeles. E têm agora uma maior chance de visibilidade.
“É uma coisa excelente do facto de a indústria ter mudado tanto nos últimos cinco anos”, indicou. “No Netflix, algumas das maiores séries não são americanas, o que é uma coisa que há cinco anos seria impensável. Nem sequer produziria essas séries”.
A série sul-coreana “Squid Game” é a mais vista de sempre no Netflix e a série espanhola “La Casa de Papel” a terceira maior em popularidade.
“Se, por um lado, é mais difícil chegarem aos cinemas, é muito mais fácil chegarem às televisões de pessoas em todo o mundo”, disse Carvalhal. “Se a experiência do cinema se perde um bocado, a qualidade dos filmes diferentes feitos por pessoas de todo o mundo, que anteriormente não tinham acesso, é uma coisa excecional”.
A questão da distribuição é fundamental, por causa da forma como o sistema está montado. “Há muito bom cinema original a ser feito em todo o mundo, mas é muito difícil para um filme original ter distribuição porque os custos são muito elevados”, afirmou o guionista.
“Tentar fazer uma coisa nova num serviço de ‘streaming’ é mais fácil de sustentar que no cinema, em que o filme tem de ser distribuído para três mil salas e isso custa milhões”, continuou. “Muitas vezes custa mais a distribuir o filme do que a produzir”.
Para os estúdios, isto significa menor apetência pelo risco. “Não podem investir em nada que seja demasiado arriscado, porque não têm garantias de que vão reaver o dinheiro”.
Isso tem levado, segundo Carvalhal, “as pessoas que estavam a fazer coisas mais interessantes aqui nos Estados Unidos um bocado mais para o mundo do ‘streaming’”.
O momento e a sorte também acabam por ditar o que é feito e o que não é, por vezes sendo mais importante que a própria qualidade da escrita.
“A sorte é uma coisa que às vezes não é referida o suficiente”, frisou. “É completamente uma questão de sorte, das pessoas que estão à tua volta, com quem desenvolves um projeto. É um enorme fator”.
Há ainda a questão dos ciclos e do que está a ter sucesso. “Não é só o facto de ser uma boa ideia ou uma má ideia, mas se é uma ideia de que o mercado esteja à procura. E o mercado muda de três em três meses”, referiu.
“Cada dia sai uma série ou um filme novo, e se tem imenso sucesso de repente toda a gente quer uma coisa igual. Se na semana seguinte sai um parecido mas que é um falhanço total, já ninguém quer comprar”, continuou. “Esses ciclos são muito mais rápidos do que o tempo que demora a escrever filmes”.
Um dos projetos futuros que tem na calha é uma adaptação do conto “Os Canibais”, de Álvaro do Carvalhal (seu antepassado, escritor que se distinguiu na ária do fantástico e do horror), e que pretende realizar para o mercado português.
“Há gente a fazer filmes excelentes em Portugal”, notou. “Não há falta de talento, tanto a nível técnico como artístico, e [há] cada vez mais”.
Do que precisa agora é de financiamento, numa indústria cuja natureza é limitada. “Tens muitos mais falhanços do que sucessos”, reconheceu. “Mas depois há um que funciona. Eu tento-me focar nas coisas que funcionam”.
ARYG // MAG
Lusa/Fim